Quando o corpo trai

Revirei a estante de livros nos últimos dias, procurando um texto de Hélio Pellegrino sobre a tortura. Encontrei. Está no livro "A Burrice do Demônio". Só depois lembrei de buscar na Internet. Foi digitalizado e publicado na página do grupo "Tortura Nunca Mais" do RJ.

No texto breve, de 1982, Hélio Pellegrino, médico e psicanalista, descreve seu conceito sobre a ruptura entre corpo e mente que ocorre com as vítimas de tortura.  Sob a dor que lhe impõe o torturador, o corpo do torturado torna-se seu inimigo, volta-se contra ele exigindo sua rendição para assim dar fim a dor. Feita a confissão, vencido pelo próprio corpo, vem a degradação moral por ter traído seus valores fundamentais. "A ausência de sofrimento corporal, ao preço da confissão que lhe foi extorquida, lhe custa a amargura de sentir-se traidor, traído pelo próprio corpo. Sua carne apaziguada testemunha e denuncia a negação de si mesmo. [...] A tortura, quando vitoriosa, opera no sentido de transformar sua vítima numa desgraçada - e degradada - espectadora de sua própria ruína."

Não lembrei do texto por conta dos casos de tortura que diariamente se noticia - lembrando-nos o quanto de barbárie ainda temos a superar - mas sim, por motivo bastante egoísta.

Há mais de um ano comecei uma briga contra um problema de saúde simples, mas doloroso. Nada que coloque em risco a vida, mas a torna questionável diante de tanta dor. Além do tormento físico, a angústia de sentir-se abandonado por seu mais fiel companheiro, o próprio corpo. "Sem um mínimo de solidariedade do corpo próprio para conosco, ficamos não apenas desabrigados, expostos a um duro e frio relento, mas literalmente sem chão, sem apoio elementar, entregues às ansiedades inconscientes mais primitivas", diz Hélio Pellegrino.

Passei por cinco bons médicos e a todos pedi a mesma coisa: faça a dor passar, por favor! Todos disseram que os analgésicos disponíveis apenas amenizavam a dor. E morfina? Ouvi variações da resposta "não é recomendado". Por que? "Só em casos extremos". Meses de dor insuportável, somada ao horror de esperar a próxima crise, mais o fim da vida social não é extremo? "Não."

Seis meses depois, a amiga indicou-me Anna, médica formada em medicina chinesa. "Primeiro vamos cuidar da sua dor", ela disse... Pensei em beijar seus pés. Alguém na medicina se importava com a dor! Contive-me. Um mês aos cuidados de Anna e suas fórmulas de nomes ilegíveis, e as crises se foram.
Ainda precisei de uma cirurgia convencional para evitar recidivas. Então tive minhas 48 horas sob o efeito da Flor da Tailândia. O paraíso na terra, seguido de vinte dias de terror. Morfina só no hospital. Em casa você pode urrar à vontade... Quem, na medicina, se importa?

Foi o que perguntei por aí. Como resposta, uma feliz surpresa: alguns começam a se importar. Poucos ainda.
Sobre o uso da morfina, por exemplo, o médico Drauzio Varella pergunta: "de onde vem tanto preconceito contra essa droga milenar?" E responde: "vem da ignorância, como todo preconceito. O medo dos médicos, familiares e das autoridades que controlam a distribuição da droga é de que os usuários se tornem dependentes dela, razão jamais demonstrada cientificamente. [...]
No Brasil, os que padecem de dores crônicas de forte intensidade vivem um calvário, pela falta de acesso à assistência médica, porque os médicos receitam analgésicos inadequados e porque a burocracia cria entraves ao fornecimento de opiáceos".

Sobre outra questão humana delicada, o direito a uma morte digna - que parece não comover muitos médicos - também começam a surgir algumas respostas.
Vinte anos após a recomendação da OMS, o novo Código de Ética Médica brasileiro, de 2010, trata mais claramente da ortotanásia, definida como "a morte natural, sem interferência da ciência, permitindo ao paciente morte digna, sem sofrimento" (wikipédia). Pelos seus princípios, o paciente em estado grave, sem chances de recuperação, deve ser submetido a um conjunto de cuidados médicos paliativos que diminuam seu sofrimento físico, psicológico e espiritual.
O Hospital do Servidor Público de São Paulo foi o primeiro a adotar, há 10 anos, a prática dos cuidados paliativos. E está fazendo escola, apesar das críticas da medicina mais conservadora. Existe já um grupo de médicos tentando transformar os cuidados paliativos em especialidade médica.

O sol se põe sobre o Rio da Prata - Uruguai
A medicina foi capaz de humanizar os nascimentos. Por que motivos ainda resiste em humanizar a morte? Não faz ela parte da vida? A proximidade da morte, como o nascer, é a vida em estado frágil, delicada, contida em um corpo débil que precisa ser cuidado.

Depois da cirurgia, acordei na sala de pós operatório. Estava sozinha. O lugar era imenso e parecia gelado. Havia um beep, no rítmo das batidas de um coração, vinha do fundo da sala, atrás de uma cortina. Não conseguia mexer as pernas. Uma enfermeira passava de vez em quando, fazia cócegas no pé para ver se a sensibilidade estava voltando, perguntava se eu sentia frio. Não, nem frio, nem dor ou sede, apenas uma solidão absoluta. A enfermeira parecia se referir a outro corpo. O meu não estava ali. Era mais que solidão. Abandono.
Minutos ou horas depois, veio a médica. Disse que estava tudo bem. Antes de sair passou a mão no meu rosto e arrumou meu cabelo. Gesto suficientemente humano nesse deserto frio onde o corpo nos abandona...



Referências do post

Morfina - Drauzio Varella
http://tinyurl.com/6c8npec

A Tortura Política - Hélio Pellegrino
http://tinyurl.com/67myqfn

Ética define como dever do médico garantir morte digna - Emilio Sant'Anna
http://tinyurl.com/6lbp6la

Filmes
'A Balada de Narayama' e 'A Partida'

Livro
'As Intermitências da Morte' - José Saramago

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