"É feio então o Amor, e mau?"

Na última sexta, levei Platão e o seu Banquete para conhecer uma Delegacia da Mulher. O nome oficial é Delegacia Especializada de Crimes Contra a Mulher. Acompanhava uma amiga que pretendia registrar uma ocorrência. Como não é permitido que se acompanhe a "vítima" pelos labirintos da Delegacia, esperei por ela durante 3 horas na sala de entrada. Ali também ficam as mulheres que aguardam o atendimento.
Sentei na sala quente e silenciosa e abri "o Banquete". Era a vez de Sócrates fazer o seu elogio ao Amor.
"- Que dizes, ó Diotima? É feio então o Amor, e mau?
E ela: - Não vais te calar? Acaso pensas que o que não for belo é forçoso ser feio? [...] Assim também o Amor, que não é bom nem belo, nem por isso vás imaginar que ele deve ser feio e mau, mas sim algo que está entre esses dois extremos.
- E todavia é por todos reconhecido que ele é um grande deus. [...]
E ela: - Diz-me, com efeito, todos os deuses não os afirmas felizes e belos? Ou terias a audácia de dizer que algum deles não é belo e feliz? [...] Como então seria deus o que justamente é desprovido do que é belo e bom?
- Que seria então o Amor?, perguntei-lhe."
Que seria então o Amor? As mulheres na sala de espera da delegacia estariam se perguntando o mesmo? Que deus é esse em quem acreditaram, a quem confiaram seus sonhos e hoje as abandona assim, com toda essa dor? Foram traídas por seu deus, o Amor?

Elas não conversam, não falam ao telefone, às vezes cochicham algo com a amiga, a irmã que as acompanha. Não reclamam da espera interminável - sair dali para onde? Não tem água, o único bebedouro está quebrado. Um dos ventiladores, desligado. A sala lembra um velório. Algo morreu... e precisa ser enterrado, mas elas não tem pressa - esperam um milagre, talvez. Não é Ele um deus? bom e belo? - Os gestos são mecânicos, os olhares estão vazios, as expressões cansadas de uma luta perdida. Uma delas busca um batom na bolsa e passa cuidadosamente nos lábios, observa-se no pequeno espelho por instantes. Do outro lado da imensa dor que a esconde, ela deve ser muito bonita. A menina sentada no fundo da sala desmaia. Ninguém levanta para socorrer, algumas nem se mexem na cadeira para olhar - cuidar da própria dor já é suficiente por hora...

Quando chamadas ao atendimento, são recebidas por uma delegada, moça jovem e bonita, possivelmente em seu primeiro emprego. Não parece entender como o Amor, esse deus belo e cultuado, pode ser terrível.
Como será que ela acolhe a dor daquelas mulheres, dor que ainda não compreende? E que marcas deixarão nela?

A amiga que acompanhei saiu de lá protegida pela Lei Maria da Penha. Fomos juntas visitar um outro amigo: jovem, belo e gay. Pobre menino lindo! Apenas começa a contemplar as várias faces de Eros. E a descobrir que "todo Anjo é terrível"...

Estranhas asas. Forte do Leme - RJ

"QUEM, SE EU GRITASSE, entre as legiões dos Anjos
me ouviria? E mesmo que um deles me tomasse
inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia
sua existência demasiado forte. Pois que é o Belo
senão o grau do Terrível que ainda suportamos
e que admiramos porque, impassível, desdenha
destruir-nos? Todo Anjo é terrível.
E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo
do meu soluço obscuro.
[...]
Será mais leve para os que se amam?"
Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno, Primeira Elegia


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