Os pés de Ate

Aproveitava o vôo indesejado para ler "O Banquete":
  
Biribiri - Diamantina - MG

"jovem ele é, mas além de jovem ele é delicado; falta-lhe porém um poeta como era Homero para mostrar sua delicadeza de deus. Homero afirma, com efeito, que Ate é uma deusa, e delicada - que os seus pés em todo caso são delicados - quando diz:



seus pés são delicados; pois não sobre o solo
se move, mas sobre as cabeças dos homens ela anda."

... e o mundo mergulhou no vazio por instantes... O embrulho prateado voou do colo do rapaz sentado ao lado. Ele agarrou o encosto do banco da frente com uma das mãos e o meu pulso com a outra. Soltou quando o mundo começou a sacudir, e se desculpou. Recolheu o embrulho prateado. Turbulência, avisou o piloto. Todos em silêncio, até que um desavisado veio andando pelo corredor puxando um garotinho pela mão. "Senhor, sente-se", a comissária pediu. "Mas ele está passando mal!". "Sente-se assim mesmo! Não pode andar agora". Continuou andando. "Senta agora!". Sentou no assento vazio ao meu lado. A comissária ainda tinha ordens: "Sente-se direito, e coloque o cinto!". Enquanto ele obedecia, nova queda no vazio piorou a indisposição do garotinho e o humor geral. Eu, ao alcance da indisposição do menino, só tinha um pensamento, 'ai meu deus, não trouxe outra roupa!'. O rapaz assustado achou meu pulso novamente. Resolvi salvar minha mão antes da roupa: "calma, não vamos cair". Tive impressão que ele sorriu. Bom sinal. Continuei, "é que estou numa maré de azar... tudo bem! ... vou para uma reunião escrota com chances próximas de 100% de me dar muito mal. Considerando a maré, é pouco provável que o universo conspire pra me salvar dessa fria, fazendo o avião cair. Já na volta... melhor você não pegar o mesmo voo que eu...". Riu, e eu voltei a sentir os dedos da mão...

A única vítima fatal da história foi o embrulho prateado: destruído. Ele contou que dentro estava um livro, presente para a namorada. Passaria o Natal na casa dela. Queria entregar no aeroporto. "Será que pega mal dar o presente desembrulhado?". "Que livro é?". "Cora Coralina". A mãe ajudou a escolher, ele não conhecia. "Será que ela vai gostar?". "Vai adorar. E se você ler um dos poemas para ela, provavelmente nunca vai esquecer. Além de ser uma boa desculpa para a falta do embrulho...". Ele escolheu Meu Destino
Nas palmas de tuas mãos
leio as linhas da minha vida.
Linhas cruzadas, sinuosas,
interferindo no teu destino.
Não te procurei, não me procurastes –
íamos sozinhos por estradas diferentes.
Indiferentes, cruzamos
Passavas com o fardo da vida...
Corri ao teu encontro.
Sorri. Falamos.
Esse dia foi marcado
com a pedra branca
da cabeça de um peixe.
E, desde então, caminhamos
juntos pela vida...
Saindo do aeroporto, vi os dois sentados esperando pelo ônibus. Ela tinha o livro no colo.
"Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante."
(Felicidade Clandestina, C. Lispector)

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