Madre Tierra, Pachamama

Estranha essa sensação de viver em dois países diferentes, ao mesmo tempo, sem andar mais do que alguns quilômetros.
Mas é uma impressão constante nos últimos meses. Abro um jornal ou revista e leio: o país caminha para uma ditadura. Outro: a stalinização nos ronda. Mais um: governo cerceia liberdade de imprensa. Economia à beira do colapso. Relações diplomáticas vergonhosas. Comércio internacional com a China!?
"Que país é esse?", me pergunto. Pobre desse povo! Onde me inscrevo para ajudar de alguma forma?

Visto uma capa e saio para andar na chuva. Esfriar. Chuva é oração, acalma o espírito. Passo numa banca de jornal e observo as manchetes expostas. Conto doze publicações, entre jornais e revistas semanais. Onze delas criticam o governo. A décima segunda critica as outras onze. Ainda bem que vivo num país onde existe liberdade de imprensa!

Mais umas quadras, entro em um café, sento e ouço a conversa da mesa ao lado enquanto espero. Comentam sobre um senador que ameaçou bater no presidente da república em discurso no plenário. Ainda bem que ele não vive naquele país que li nos jornais! Já estaria morto ou torturado em algum porão. 

Tomo o café e volto à chuva. O supermercado é a próxima parada. Entro para comprar chocolate, francês, excelente qualidade e muito barato. Compro dois, um levo ao trabalho para o colega filar. Aproveito e levo um vinho espanhol, mais barato que os nacionais. É verdade que o câmbio está desvalorizado, mas me ocorre outro detalhe: a velha Europa não é mais a mesma, desceu do salto alto colonial. Ainda bem que nossas boas relações diplomáticas internacionais nos abriram um novo mercado com a China.

Vou para o caixa. Na fila dois amigos conversam. Comentam, envaidecidos, de suas conquistas financeiras dos últimos anos. Um comprou um carro bacana, outro mandou o filho de férias à Europa, presente por ter entrado em uma universidade pública conceituada. Mas reclamam dos impostos. Eles, que tanto se esforçaram para conquistar uma boa vida, precisam dar dinheiro para o governo comprar votos com essa "bolsa esmola" e financiar cotas nas universidades públicas.
Lembrei de um amigo contando que ouviu, em situação parecida, alguém como esses meus vizinhos de fila comentando: "pior é ter que dividir a fila com essa gente, classe C..."
Como diria Mino Carta: mas que mentalidade!
http://www.cartacapital.com.br/app/materia.jsp?a=2&a2=8&i=7014

Não quero ouvir mais nada, só a chuva. Para não correr risco, visto a capa outra vez, um fone de ouvidos, e ouço "Madre Tierra, Pachamama". Saio para a chuva novamente. Anoiteceu.
Ainda bem que não vivo naquele país dos jornais... Será que lá chove?


Madre Tierra, Pachamama, do gaúcho Keco Brandão. CD Tatanka


Sobre cotas nas universidades - Inclusão desmitificada

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