O mito de uma 'relação aberta'

Estrada entre Ipoema e Senhora do Carmo - MG
Mesmo quem nada conhece sobre Sartre ou Simone de Beauvoir, saberia citar três fatos sobre eles: Sarte escreveu "A Náusea". Certo. Simone de Beauvoir escreveu "O Segundo Sexo", considerado a bíblia do feminismo. Exato. E os dois viveram uma relação aberta. Como é!?

Fui campear algumas definições sobre o tema, a internet incluída no campo de pesquisa. Pode-se resumir as respotas assim: vive-se uma relação aberta quando um casal decide que cada um pode viver suas próprias experiências sexuais fora do relacionamento, mas preservando-o. Quase sempre com ênfase nas 'experiências sexuais', que devem ser do tipo aventura, transitórias.
E experiências não sexuais, pode? Poucas respostas. Muitos "hum... se pintar envolvimento complica..."
Também complicou a definição...

Outra regra bastante frequente é o compromisso de relatar ao outro as tais experiências. Um bom mecanismo de controle, sem dúvida. Mais econômico do que detetives, escutas, coleções de telefones. Além de alimentar um certo fetiche voyeurista.

Os adeptos garantem que não há ciúmes, mas sim desapego e cumplicidade. E, claro, não tem espaço para mentiras entre o casal.

Nenhuma crítica ou objeção às relações abertas, mas dizer que foi isso que viveram Sarte e Simone de Beauvoir...

Para começar, eles não foram casados, nem conviveram maritalmente, não dividiram uma casa, não tiveram filhos. Compartilharam, visceralmente tudo indica, um ideal de mundo, de sociedade. Conheceram-se jovens, aos 19 ou 20 anos, e mantiveram um relacionamento íntimo, sexual, apenas nos primeiros 8 anos, anos de 2a Guerra, quando Sartre esteve no front e ambos começaram sua produção filosófica e literária. Depois disso... bem, depois disso veio toda a sua história.

Foram inseparáveis, um, impensável sem o outro. Ela, diz Hazel Rowley no seu "Tete a Tete", era capaz de perceber as menores falhas lógicas, que escapavam a todos, no pensamento dele. Primeira leitora de seus manuscritos, sua crítica, revisora, tradutora. Seu Castor. "Não posso me separar da senhora, que é como a consistência de minha pessoa". (1).
Ele, convenceu-a a escrever sobre as mulheres. Dizia que ela devia contar ao mundo sua própria experiência, que tinha muito a dizer. E dessa insistência nasceu "O Segundo Sexo".
"Sonhar cada um para si, escrever cada um para o outro". (2)

Viveram, envolveram-se com tudo. Parece-nos, olhando daqui do século XXI, que nada do século anterior passou por eles despercebido, sem ocupar suas reflexões e sua caneta.
E se envolveram com todos. Ele e suas muitas mulheres, uma russa, outra americana, a brasileira de Manaus, uma italiana, além das francesas, muitas. Por todas, apaixonado.
Ela e seus Mandarins, e seu grande amor transatlântico, o escritor Nelson Algren. Amor sensual, intenso, frustrado pela distância entre Paris e Chicago, possível graças aos primeiros e arriscados voos entre a Europa e as Américas.
Foi de Nelson Algren que ganhou o anel mexicano com que foi enterrada, ao lado de Sartre, em Montparnasse.
E foi para Sartre "A Cerimônia do Adeus", seu último livro, sua despedida, escrito após a morte dele. "Eis aqui meu primeiro livro – o único certamente – que você não leu antes que o imprimissem. Embora todo dedicado a você, ele já não lhe concerne."

Como reduzir tal experiência a uma definição? Confiná-la ao contexto da liberdade sexual entre um casal? Muitos tentaram, usando formas das mais sublimes às mais grotescas: amor intelectual, luxúria, liberdade, corrupção, amor necessário contra amores contingentes. Nenhuma, nem a junção de todas, conseguiu.

"Uma coisa não mudou e não pode mudar: não importa o que aconteça e o que eu venha a ser, virei a ser o que eu for com você." Carta de Sarte à Beauvoir.

"Eu estava querendo iludir quando dizia que éramos uma pessoa só. Entre dois indivíduos, a harmonia nunca é um dado: precisa ser conquistada constantemente." Simone de Beauvoir em suas memórias.

Joana, antiquada que é, e um pouco mal humorada, resume: quer cair na putaria e não encontrar seus discos arranhados quando voltar? Caia, mas não use a história de Sartre e Simone de Beauvoir para justificar.

(1) "Cartas ao Castor", citado em "O Século de Sartre", de Bernard-Henri Lévy
(2) "O Século de Sartre"

Resenha de "Cartas a Nelson Algren", de Simone de Beuvoir
http://www.ilea.ufrgs.br/episteme/portal/pdf/numero20/episteme20_resenha_chassot.pdf
Se alguém leu os comentários da revista Veja sobre o livro, por favor, permita-se ler no mínimo essa resenha antes de concluir.

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